terça-feira, 28 de agosto de 2012

Livre-arbítrio e responsabilidade humana - Corliss Lamont

A minha tese é a seguinte: a pessoa que está convencida que tem liberdade de escolha ou livre-arbítrio tem um maior sentido de responsabilidade do que a pessoa que pensa que o determinismo absoluto governa o universo e a vida humana. O determinismo no sentido clássico significa que todo o fluir da história, incluindo todas as escolhas humanas e as ações, estão completamente determinadas desde o início dos tempos. Quem quer que acredite que "o que tem que ser, será" pode tentar escapar à responsabilidade moral apesar de ter agido erradamente defendendo que tal estava predestinado por leis rígidas de causa e efeito. Mas se a livre escolha realmente existe na altura de escolher, os homens têm claramente responsabilidade moral por decidirem entre duas ou mais alternativas genuínas, e o álibi determinista não tem qualquer peso. Assim, o coração da nossa discussão radica na questão de saber se é verdade que temos livre escolha ou se é verdadeiro o determinismo universal. Tentarei resumir brevemente as razões principais que apontam para a existência de livre-arbítrio. Primeiro: há uma intuição vulgar imediata e poderosa, que é partilhada por virtualmente todos os seres humanos de que existe liberdade de escolha. Esta intuição parece-me tão forte como a sensação de prazer ou de dor; e a tentativa dos deterministas provarem que esta intuição é falsa é tão artificial como a pretensão […] de que a dor não é real. Claro que a existência desta intuição não prova por si a existência da liberdade de escolha, mas justamente por ser uma intuição tão forte, coloca o ônus da prova do lado dos deterministas, que têm que provar que se baseia numa ilusão. Segundo: podemos recusar o argumento determinista admitindo, ou até insistindo, que há uma grande quantidade de determinismo no mundo. O determinismo na forma de leis causais do tipo "se…então…" governa não só o funcionamento de inúmeros movimentos corporais como o funcionamento de grande parte do universo. Podemos estar contentes com o fato dos sistemas respiratório, digestivo, circulatório, e dos batimentos cardíacos, funcionarem deterministicamente — pelo menos até avariarem. O determinismo versus livre-arbítrio é uma falsa questão; o que nós sempre tivemos foi um determinismo e um livre-arbítrio relativos. O livre-arbítrio sempre esteve limitado pelo passado e por um conjunto vasto de leis causais do tipo "se…então…". Ao mesmo tempo, os seres humanos usam o livre-arbítrio para tirarem partido daquelas leis determinísticas que fazem parte da ciência e das máquinas que produziram. A maioria de nós guia carros, e somos nós e não estes quem decide quando e para onde vão. O determinismo usado de forma sábia e controlada — o que nem sempre se verifica — pode tornar-nos mais livres e felizes. Terceiro: o determinismo é algo relativo, não apenas porque os seres humanos têm liberdade de escolha, mas também porque a contingência e o acaso são um traço fundamental do cosmos. A contingência percebe-se melhor na intersecção de sequências de eventos independentes entre si sem qualquer conexão causal prévia. O meu exemplo favorito é o da colisão do transatlântico Titanic com um iceberg, a meio da noite de 14 de Abril de 1912. Foi um acidente terrível em que morreram mais de 1500 pessoas. A deriva do iceberg desde o norte e o percurso do Titanic de oeste a partir de Inglaterra representam claramente duas sequências causais de eventos independentes. Se, por hipótese, um grupo de especialistas tivesse sido capaz de identificar as duas sequências causais e assegurar que tal catástrofe estava predeterminada desde o momento em que o transatlântico deixou o porto de Southampton, ainda assim isso não perturbaria a minha teoria. A relação espaço-tempo do iceberg e do Titanic, desde que este iniciou a sua viagem, seria, em si, uma relação de contingência, já que não haveria qualquer causa relevante para a explicar. Como referi, a presença constante da contingência no mundo é igualmente provada pelo fato de todas as leis naturais assumirem a forma de sequências ou relações do tipo "se…, então…". O elemento se é obviamente condicional e demonstra a coexistência habitual da contingência com o determinismo. A atualidade da contingência nega a ideia de uma necessidade total e universal a operar em todo o universo. No que diz respeito as escolhas humanas, a contingência assegura que as alternativas de que temos experiência são indeterminadas relativamente ao ato de escolher, o que faz depois que uma delas seja determinada. A minha quarta razão é que o significado aceite de potencialidade, nomeadamente, de que todo o objeto e acontecimento no cosmos têm possibilidades plurais de comportamento, interação e desenvolvimento, deita por terra a tese determinista. Se quiseres realizar uma viagem de férias no próximo Verão, pensarás sem qualquer dúvida em inúmeros destinos possíveis antes de te decidires. O determinismo implica que isso não seja mais do que teatro, pois estás determinado escolher precisamente o destino que escolheste. Quando relacionamos o padrão causal com a ideia de potencialidade, verificamos que a causalidade mediada pela escolha livre pode ter o seu efeito apropriado na atualização de qualquer uma das diversas possibilidades existentes. Quinto: os processos normais do pensamento humano estão ligados à ideia de potencialidade tal como a descrevi, e do mesmo modo tendem a mostrar que a liberdade de escolha é real. Pensar envolve constantemente concepções gerais, universais ou abstratas sob as quais são classificados os diferentes particulares. No caso que discuti na minha quarta razão, "viagem de férias" era a concepção geral e os diferentes lugares que poderias visitar eram os particulares, as alternativas, as potencialidades, que alguém podia livremente escolher. Se de fato não houver liberdade de escolha, então a função do pensamento humano de resolver problemas torna-se supérflua e numa máscara de faz-de-conta. Sexto: é esclarecedor para o problema da liberdade de escolha perceber que apenas existe o presente, e que é sempre alguma atividade presente que dá origem ao passado, no mesmo sentido em que um esquiador deixa atrás de si um trilho na neve quando desce uma colina. Tudo o que existe — o vasto conjunto agregado de matéria inanimada, a imensa profusão de vida anterior, o ser humano em toda a sua diversidade — existe ou existem apenas como acontecimentos quando ocorrem neste instante exato, que é agora. O passado está morto e passado; existe apenas na medida em que se exprime nas estruturas e atividades presentes. A atividade do presente imediatamente anterior estabelece os fundamentos através dos quais opera o presente imediato. O que aconteceu no passado tanto cria limitações como possibilidades, que condicionam sempre o presente. Mas condicionar neste sentido não significa o mesmo que determinar; cada dia se desenvolve a partir de agora no seu próprio momento, atualizando novos padrões de existência, mantendo e destruindo outros. Portanto, quando um homem escolhe e age no presente não é inteiramente controlado pelo passado, mas parte da evolução interminável do poder cósmico. É um agente ativo e iniciador, que, montado na onda de um dado presente, delibera entre alternativas abertas para alcançar decisões relativamente às muitas e diversas fases da sua vida. A minha sétima razão é que a doutrina do determinismo universal e eterno se autorrefuta quando consideramos, por redução ao absurdo, todas as suas implicações. Se as nossas escolhas e ações de hoje estivessem determinadas ontem, então estariam igualmente determinadas antes de ontem, no dia do nosso nascimento, no dia do nascimento do nosso sistema solar e da terra há bilhões de anos. Considere-se então a consequência: para o determinismo, o chamado impulso irresistível que os sistemas jurídicos reconhecem quando julgam crimes cometidos por pessoas insanas, deve ser considerado com o mesmo vigor para as ações realizadas por pessoas sãs e virtuosas. Segundo a filosofia determinista, o homem bom sente um impulso irresistível para dizer a verdade, para ser bom para os animais e para expor a corrupção na política. Oito: são inúmeras as palavras que perdem o seu significado normal no novo dialeto do determinismo. Refiro-me a palavras como abstenção, proibição, moderação e remorso. Uma vez provada a verdade do determinismo, teríamos que rasurar grande parte dos dicionários existentes e redefinir uma grande quantidade de coisas. Por exemplo, que significado deveria ter proibição quando já está determinado que irás recusar o segundo cocktail de Martini? Em boa verdade, só se pode proibir quando se quer impedir alguém de fazer alguma coisa que esteja no seu alcance fazer. Mas segundo o determinismo não poderias aceitar o segundo cocktail por já estar predeterminado que dirás "Não". Não estou a dizer que a natureza deva conformar-se aos nossos usos linguísticos, mas os hábitos linguísticos dos seres humanos, que evoluíram ao longo da imensidão dos tempos, não podem ser negligenciados na análise do livre-arbítrio e do determinismo. Finalmente, não penso que o termo "responsabilidade moral" possa manter o seu significado tradicional, a não ser que exista liberdade de escolha. Segundo a perspectiva da ética, da lei e do direito criminal, é difícil entender como um determinista consistente possa ter um sentido de responsabilidade pessoal adequado relativamente ao desenvolvimento de padrões éticos decentes. Mas a questão permanecerá independentemente de terem sido ou de alguma vez poderem vir a ser deterministas consistentes, ou até do fato de o livre-arbítrio ser um traço inato e tão profundamente característico da natureza humana, como sugeriu Jean-Paul Sartre ao afirmar "Não somos livres para deixar de ser livres". (Retirado de "Freedom of the Will and Human Responsibility", in Pojman, Louis P. (2006), Philosophy: The Quest for Truth, 6.ª ed. Nova Iorque, Oxford University Press, pp. 367-368.)
Questões 1.Qual a tese defendida pelo autor e como é definido o determinismo? 2.Porque pode-se dizer que o determinismo e o livre arbítrio são relativos? 3. O que o autor quer dizer com a expressão ”a presença constante da contingência no mundo é igualmente provada pelo fato de todas as leis naturais assumirem a forma de sequências ou relações do tipo "se…, então…"? 4.Porque o determinismo absoluto se autorrefuta? 5.Porque algumas palavras perdem o sentido no novo dialeto do determinismo?

terça-feira, 21 de agosto de 2012

Texto: Mundo de Sofia - Aristóteles

Cara Sofia! Ficaste certamente espantada com a teoria das ideias de Platão. Não és a primeira. Não sei se aceitaste tudo com facilidade ou se fizeste alguns comentários críticos. Mas se fizeste comentários críticos, podes estar certa de que as mesmas objeções foram levantadas já por “Aristóteles” (384-322 a.C.). Ele foi durante vinte anos aluno na Academia de Platão. Aristóteles não era um ateniense. Era natural da Macedônia, mas foi para a Academia quando Platão tinha 61 anos. O pai era um médico reconhecido - ou seja, um cientista. Este pano de fundo já nos diz algo sobre o projeto filosófico de Aristóteles. Aquilo que o interessava acima de tudo era a natureza viva. Não foi apenas o último grande filósofo grego, foi também o primeiro grande biólogo da Europa. Se quisermos formular tudo de um modo um tanto exagerado, podemos dizer que Platão estava tão concentrado nas formas ou "ideias" eternas que mal reparava nas transformações da natureza. Aristóteles, pelo contrário, interessava-se precisamente pelas transformações – ou aquilo que nós hoje designamos por processos físicos. Se quisermos exagerar ainda mais, podemos dizer que Platão se afastava do mundo sensível e só distinguia passageiramente aquilo que vemos à nossa volta. (Ele queria sair da caverna! Queria olhar para o eterno mundo das ideias!). Aristóteles fazia exatamente o inverso: dirigia-se à natureza e estudava peixes e rãs, anêmonas e papoulas. Podes dizer que Platão usou apenas o seu entendimento; Aristóteles, por seu lado, usou também os sentidos. Até na sua maneira de escrever encontramos claras diferenças. Enquanto Platão era poeta e criador de mitos, os textos de Aristóteles são secos e pormenorizados como uma enciclopédia. Em compensação, na origem de muitas coisas acerca das quais ele escreve, há estudos naturalistas intensivos. Na Antiguidade são referidos mais de 170 títulos que Aristóteles terá escrito. Hoje, conservam-se 47 textos. Não se trata de livros acabados. A maior parte dos textos de Aristóteles são constituídos por apontamentos para as lições. Mesmo no tempo de Aristóteles, a filosofia era principalmente uma atividade oral. A importância de Aristóteles para a cultura europeia não reside apenas no fato de ele ter criado a linguagem técnica que ainda hoje as diversas ciências utilizam. Ele foi o grande sistemático que fundou e ordenou as diversas ciências. Como Aristóteles escreveu sobre todas as ciências, vou tratar apenas de algumas das áreas mais importantes. Dado que falei tanto de Platão, deves saber primeiro como é que Aristóteles argumenta contra a teoria das ideias de Platão. Depois, vamos ver como é que ele concebe a sua própria filosofia da natureza. Aristóteles recapitulou aquilo que os filósofos da natureza antes dele disseram. Vamos ver como é que ele ordena os nossos conceitos e funda a lógica como ciência. Por fim, vou falar ainda um pouco da visão de Aristóteles acerca do homem e da sociedade. Se aceitares estas condições, só precisamos arregaçar as mangas e começar. “Não há ideias inatas” Tal como os filósofos anteriores, também Platão queria encontrar algo eterno e imutável no meio de todas as transformações. Deste modo, encontrou as ideias perfeitas, que são superiores ao mundo sensível. Além disso, para Platão, estas ideias eram mais reais do que todos os fenômenos na natureza. Primeiro, vinha a ideia "cavalo" - em seguida, todos os cavalos do mundo sensível, que galopavam como cópias na parede de uma caverna. Logo, a ideia "galinha" veio antes da galinha e do ovo. Aristóteles achava que Platão tinha posto tudo às avessas. Estava de acordo com o seu professor em que o cavalo particular "flui", e que nenhum cavalo vive eternamente. Também estava de acordo em que a forma do cavalo é em si eterna e imutável. Mas a "ideia" cavalo é, para ele, apenas um conceito que nós homens formamos, depois de termos visto um determinado número de cavalos. Para Aristóteles, a "forma" cavalo consiste nas características do cavalo – diríamos hoje na “espécie” cavalo. Vou precisar: pela "forma" cavalo, Aristóteles designa aquilo que é comum a todos os cavalos. E neste caso, a imagem da forma do biscoito já não é válida, porque as formas existem independentemente do biscoito particular. Aristóteles não acreditava que essas formas, por assim dizer, existissem na sua própria prateleira na natureza. Para Aristóteles, as "formas" residem nas próprias coisas como qualidades específicas das coisas. Aristóteles também não concorda com Platão em que a ideia "galinha" precede a galinha. Aquilo a que Aristóteles chama a "forma" galinha, reside na forma das qualidades específicas de cada galinha - por exemplo, pôr ovos. Assim, a galinha em si e a "forma" galinha são tão inseparáveis como a alma e o corpo. Com isto, dissemos basicamente quase tudo acerca da crítica de Aristóteles à teoria das ideias de Platão. Mas deves notar que estamos a falar de uma mudança drástica no pensamento. Para Platão, o grau máximo de realidade é o que pensamos com a razão. Para Aristóteles, é igualmente evidente que o grau máximo de realidade é o que percebemos ou sentimos com os sentidos. Segundo Platão, aquilo que vemos à nossa volta na natureza é apenas reflexo de algo que existe no mundo das ideias - e consequentemente na alma do homem. Aristóteles dizia exatamente o contrário: aquilo que está na alma do homem é apenas reflexo dos objetos da natureza. O mundo real é a natureza, segundo Aristóteles, enquanto Platão fica preso a uma concepção mítica do mundo que confunde as representações do homem com o mundo real. Aristóteles aponta para o fato de que nada existe na consciência que não tenha existido primeiro nos sentidos. Platão poderia ter dito que não há nada na natureza que não tenha existido primeiro no mundo das ideias.Desta forma, Platão duplicou o número de coisas, segundo Aristóteles. Ele explicara o cavalo particular recorrendo à ideia "cavalo". Que tipo de explicação é esta, Sofia? Isto é, de onde vem a ideia "cavalo"? Existirá ainda um terceiro cavalo - do qual a ideia "cavalo" é por sua vez apenas uma cópia? Aristóteles defendia que tudo o que temos em pensamentos e em ideias chegou à nossa consciência através daquilo que vimos e ouvimos. Mas também temos uma razão inata. Temos uma faculdade inata de ordenar todas as impressões sensíveis em diferentes grupos e classes. Assim nascem conceitos como "pedra", "planta", "animal" e "homem". Assim surgem os conceitos "cavalo", "lagosta" e "canário". Aristóteles não negava que o homem tivesse uma razão inata. Muito pelo contrário: para Aristóteles, a razão é precisamente a característica mais importante do homem. Mas a nossa razão está completamente "vazia" enquanto não sentirmos nada. Logo, um homem não possui "ideias" inatas. “As formas são as qualidades das coisas, e a importância da causa final” Após ter esclarecido a sua posição em relação à teoria das ideias de Platão, Aristóteles afirma que a realidade é constituída por diversas coisas particulares que apresentam uma unidade de “forma” e “matéria”. A "matéria" é aquilo a partir do qual a coisa é feita, enquanto a "forma" caracteriza as qualidades particulares das coisas. Uma galinha esvoaça à tua frente, Sofia. A "forma" da galinha é precisamente o esvoaçar – assim como cacarejar e pôr ovos. Pela "forma" da galinha são, portanto, designadas as qualidades particulares da sua espécie - ou aquilo que a galinha faz. Quando a galinha morre e deixa de cacarejar, a "forma" da galinha também deixa de existir. A única coisa que permanece é a "matéria" da galinha (é bastante triste, Sofia!); mas já não é uma galinha. Como já afirmei, Aristóteles estava interessado nas transformações da natureza. Na matéria há sempre uma possibilidade de se atingir uma determinada forma. Podemos dizer que a matéria se esforça por realizar uma possibilidade em si inerente. Cada mudança na natureza é para Aristóteles uma transformação da matéria da “possibilidade” para a “realidade”. Eu vou explicar isto, Sofia. Vou contar uma história cômica. Era uma vez um escultor que estava a trabalhar num enorme bloco de granito. Todos os dias esculpia e talhava a pedra informe, e certo dia recebeu a visita de um jovem. - O que é que procuras? - perguntou o jovem. - Espera - disse o escultor. Passados alguns dias, o rapaz voltou e nessa altura, o escultor tinha esculpido um belo cavalo a partir do bloco de granito. O rapaz fixou emudecido o cavalo. Em seguida, voltou-se para o escultor e perguntou: - Como é que sabias que isso estava ali? Sim, como é que ele podia saber? De certo modo, o escultor tinha visto a forma do cavalo no bloco de granito, porque nesse bloco de granito estava inerente a possibilidade de se tornar cavalo. Aristóteles achava que em todas as coisas da natureza está inerente uma possibilidade de realizar uma forma determinada. Voltemos à questão da galinha e do ovo. Num ovo de galinha está inerente a possibilidade de se tornar galinha. Isto não significa que todos os ovos de galinha se tornem galinhas - inclusivamente há alguns que vão parar à mesa do café – da - manhã, sob a forma de ovo estrelado, omelete ou ovo mexido, sem realizarem a forma inerente ao ovo. Mas também é óbvio que um ovo de galinha nunca se pode converter em ganso. Essa possibilidade não reside no ovo de galinha. A forma de uma coisa indica tanto as suas possibilidades como as suas limitações. Quando Aristóteles fala de forma e de matéria não está a pensar apenas em organismos vivos. Tal como a "forma" da galinha é cacarejar, bater com as asas e pôr ovos, a "forma" da pedra é cair ao chão. Tal como a galinha não pode evitar cacarejar, também a pedra não pode evitar cair ao chão. Obviamente, podes levantar uma pedra e lançá-la ao ar, mas como a natureza da pedra é cair ao chão, não a podes lançar para a lua. (Se fizeres esta experiência, deves ser um pouco cautelosa, porque a pedra pode facilmente vingar-se. Ela quer regressar à terra tão rapidamente quanto possível - e ai daquele que estiver no seu caminho!). Antes de deixarmos este gênero de considerações, segundo as quais todas as coisas animadas e inanimadas têm uma forma que diz algo acerca da sua potencialidade, devo ainda acrescentar que Aristóteles tinha uma visão bastante importante sobre as relações de causalidade na natureza. Quando, no dia-a-dia, falamos de "causas" que provocam isto ou aquilo, referimo-nos ao modo como algo sucede. A janela parte-se porque o Pedro atirou uma pedra, um sapato forma-se porque o sapateiro cose algumas peças de couro. Mas Aristóteles achava que na natureza havia vários tipos de causa. É principalmente importante compreender o que é que ele entendia por causa final. No caso da janela partida também é naturalmente oportuno perguntar por que é que Pedro atirou a pedra. Perguntamos também qual era a sua intenção, qual era a sua finalidade. Não podem subsistir dúvidas de que uma intenção ou um fim têm um papel importante na produção de um sapato. Mas Aristóteles também tinha em vista a mesma causa final em alguns processos físicos na natureza. Vamos ficar-nos por um exemplo: Porque é que chove, Sofia? Com certeza já aprendeste na escola que chove porque o vapor de água das nuvens arrefece e se condensa em gotas de água que caem no solo devido à gravidade. Aristóteles teria concordado, mas acrescentando que apenas mencionaste três causas. A causa material é o fato de o vapor de água atual (as nuvens) estar presente quando o ar arrefeceu. A “causa eficiente” é o fato de o vapor de água arrefecer, e a “causa formal” é o fato de a "forma" ou natureza da água ser cair no solo. Se não tivesses dito mais nada, Aristóteles teria acrescentado que chove porque as plantas e os animais precisam da água da chuva para crescerem. Era o que ele designava por “causa final”. Como vês, Aristóteles atribuiu às gotas de água uma espécie de finalidade vital ou a "intenção". Nós diríamos ao contrário: as plantas crescem porque há umidade. Percebes esta diferença, Sofia? Aristóteles acreditava que em toda a natureza há uma finalidade. Chove para que as plantas cresçam, e as laranjas e as uvas crescem para que os homens as comam. Hoje, a ciência já não pensa assim. Dizemos que a alimentação e a umidade são condições para que os homens e os animais possam viver. Sem estas condições, nós não existiríamos. Mas não é intenção das laranjas ou da água alimentarem-nos. No que diz respeito à sua teoria das causas, podemos sentir-nos tentados a afirmar que Aristóteles se enganou, mas não nos vamos precipitar. Muitos homens acham que Deus criou o mundo para que homens e animais pudessem viver nele. Perante este cenário, pode-se também afirmar que a água corre nos rios porque os homens e os animais precisam de água para viver. Mas, nesse caso, falamos do fim ou da intenção de Deus. Não são as gotas de chuva ou a água dos rios que nos querem bem. “Lógica e a escala da natureza” A distinção entre "forma" e "matéria" também tem um papel importante na descrição que Aristóteles faz do modo como o homem conhece os objetos na natureza. Quando conhecemos algo, ordenamos as coisas em classes ou grupos distintos. Eu vejo um cavalo, depois vejo mais um cavalo - e em seguida mais um. Os cavalos não são totalmente idênticos, mas há algo que é comum a todos os cavalos e aquilo que é comum a todos os cavalos é a "forma" do cavalo. O que é diferente ou individual pertence à "matéria" do cavalo. Desta forma, os homens ordenam as coisas e colocam-nas em locais distintos. Colocamos as vacas no curral, os cavalos na cavalariça, os porcos na pocilga e as galinhas no galinheiro. O mesmo sucede quando Sofia Amundsen arruma o seu quarto. Põe os livros na estante, coloca os livros da escola na pasta e as revistas na gaveta da cômoda. Os vestidos são dobrados cuidadosamente - a roupa interior numa prateleira, as camisolas noutra e as meias numa gaveta. Repara que fazemos o mesmo nas nossas cabeças: separamos coisas que são feitas de pedra, de lã e de borracha. Distinguimos as coisas animadas das inanimadas, e subdividimos ulteriormente estas coisas em "plantas", "animais" e "homens". Estás a compreender, Sofia? Aristóteles queria fazer uma arrumação profunda no quarto da natureza. Procurou provar que todas as coisas na natureza pertencem a diversos grupos e subgrupos. (Hermes é um ser vivo, mais exatamente, um animal, mais exatamente, um vertebrado, mais exatamente, um mamífero, mais exatamente, um cão, mais exatamente, um labrador, mais exatamente, um labrador macho). Vai ao teu quarto, Sofia. Levanta um objeto qualquer do chão. Seja o que for que tu levantes, descobrirás que aquilo em que tocas pertence a uma ordem. No dia em que vês algo que não consegues classificar sofres um choque. Se, por exemplo, descobrisses uma pequena coisa acerca da qual não conseguias dizer com segurança se pertence ao reino vegetal, animal ou mineral, acho que não te atreverias a tocar-lhe. Falei de reino vegetal, reino animal e reino mineral. Estou a pensar naquele jogo em que um pobre coitado é enviado para o corredor enquanto os outros imaginam algo que ele deve adivinhar quando regressa à sala. Os outros decidem pensar no gato do vizinho “Tareco” que, nesse momento, está sentado no jardim. Em seguida, o pobre jogador entra de novo e começa a adivinhar. Os outros só podem responder "não" ou "sim". Se o jogador é um bom aristotélico - e nesse caso não é de modo algum um pobre coitado, a conversa pode decorrer mais ou menos assim: - É concreto? - (Sim!) - Pertence ao reino mineral? - (Não!) - É animado? - (Sim!) - Pertence ao reino vegetal? - (Não!) - É um animal? - (Sim!) - É um pássaro? - (Não!) - É um mamífero? - (Sim!) – É todo o animal? - (Sim!) - É um gato? - (Sim!) - É o Tareco? (Siiiiiim! Risos...) Foi, portanto, Aristóteles quem descobriu este jogo. Por seu lado, a Platão cabe a honra de ter inventado o “esconde-esconde”; e a Demócrito já atribuímos a honra de ter descoberto o jogo do Lego. Aristóteles foi um homem meticuloso e metódico que queria pôr em ordem os conceitos dos homens. Por isso, foi ele quem fundou a “lógica” como ciência. Estabeleceu várias regras precisas para determinar que conclusões ou que demonstrações são válidas logicamente. Vamos ver um exemplo: se eu afirmo primeiro que "todos os seres vivos são mortais" (1a premissa), e afirmo em seguida que "Hermes é um ser vivo" (2a premissa), posso deduzir a conclusão: "Hermes é mortal”. (Chama-se silogismo esse tipo de construção lógica). O exemplo mostra que a lógica de Aristóteles trata da relação entre termos, neste caso "ser vivo" e "mortal". Mesmo sendo forçoso admitir que o silogismo dado é cem por cento sustentável, temos de reconhecer que ele não nos diz propriamente nada de novo. Já sabíamos que Hermes é "mortal". (Porque é um cão, e todos os cães são "seres vivos" - logo, "mortais", ao contrário das pedras). Sim, Sofia, já sabíamos isso. Mas nem sempre a relação entre grupos ou coisas nos parece tão evidente. Por vezes, pode ser necessário ordenar os nossos termos. Vou contentar-me com um exemplo: será verdade que crias de rato podem mamar leite da mãe como sucede com as ovelhas ou os porcos? Isto parece muito estranho, mas não nos podemos esquecer de que os ratos não põem ovos. (Quando é que eu vi um ovo de rato ultimamente?). Mas dão à luz crias – tal como os porcos ou as ovelhas. Mas os animais que dão à luz crias são chamados mamíferos - e os mamíferos mamam o leite das mães. Com isto, atingimos o nosso objetivo. Tínhamos a resposta dentro de nós, mas foi preciso refletir primeiro. De momento, tínhamo-nos esquecido de que os ratos mamam realmente leite das mães. Talvez seja porque nunca vimos as crias dos ratos a mamar, certamente porque os ratos se envergonham um pouco à frente dos homens quando têm de alimentar as suas crias. Quando Aristóteles quer "pôr ordem" na existência, ele aponta primeiro para o fato de que tudo o que há na natureza pode ser dividido em dois grupos principais. Por um lado, temos as “coisas inanimadas” - como pedras, gotas de água e torrões de terra. Nelas não está inerente nenhuma potencialidade de mudança. Essas coisas inanimadas só se podem alterar, segundo Aristóteles, por ação do exterior. Por outro lado, temos as “coisas animadas”, nas quais é inerente a possibilidade de se alterarem. No que diz respeito às coisas animadas, Aristóteles salienta que devem ser divididas em 2 grupos -por um lado o reino vegetal (ou plantas) e por outro os seres animados. Por fim, os seres animados podem dividir-se em subgrupos - nomeadamente os “animais” e os “homens”. Tens de admitir que esta classificação, apesar da imprecisão em relação às plantas, é clara e compreensível. Entre as coisas animadas e não animadas existe uma diferença essencial. Também entre as plantas e os animais existe uma diferença essencial, por exemplo, entre uma rosa e um cavalo. E eu gostaria de pensar também que existe uma diferença essencial entre um cavalo e um homem. Mas onde é que residem exatamente essas diferenças? Consegues responder a isto? Infelizmente, não tenho tempo para esperar que escrevas a resposta e a coloques num envelope cor-de-rosa com um torrão de açúcar, por isso respondo eu mesmo imediatamente. Quando Aristóteles classifica os fenômenos da natureza em diferentes grupos, parte das qualidades das coisas, ou, mais exatamente, do que elas podem fazer ou do que elas fazem. Todos os seres vivos (plantas, animais e homens) têm a faculdade de assimilar a alimentação, de crescer e de se multiplicar. Os homens e os animais têm ainda a capacidade de sentir e de se mover na natureza. Todos os homens têm ainda a faculdade de pensar - ou, justamente, de ordenar as suas impressões sensíveis em diferentes grupos e classes. Deste modo, não há na natureza limites verdadeiramente definidos. Vemos uma passagem gradual de plantas mais simples para plantas mais complexas, de animais simples para animais complexos. No cimo desta escala está o homem - que, segundo Aristóteles, reúne toda a vida da natureza. O homem cresce e alimenta-se, tal como as plantas, tem sensações e a capacidade de se mover, tal como os animais, mas, além disso, tem uma característica muito particular, que só o homem possui: a capacidade de pensar racionalmente. Deste modo, o homem possui uma centelha da razão divina, Sofia. Sim, eu disse "divina". Em alguns passos, Aristóteles explica que tem de haver um Deus que deu origem a todos os movimentos da natureza. Deste modo, Deus representa o vértice absoluto na escala da natureza. Aristóteles acreditava que os movimentos das estrelas e dos planetas regiam os movimentos aqui na terra. Mas tinha de haver algo que movesse os corpos celestes. A esse algo chamava Aristóteles “o Primeiro Motor” ou Deus. O primeiro motor não se move, mas é a primeira causa dos movimentos dos corpos celestes e, consequentemente, de todos os movimentos na natureza. “Ética , política e a concepção da mulher” Regressemos ao homem, Sofia. A "forma" do homem é, segundo Aristóteles, possuir uma "alma vegetativa", uma "alma sensitiva", como uma "alma racional". E ele pergunta então: como é que o homem deve viver? De que é que o homem precisa para viver bem? Posso responder em poucas palavras: o homem só é feliz quando pode desenvolver e usar todas as suas faculdades e capacidades. Aristóteles acreditava em três formas de se conseguir uma vida feliz: a primeira forma de vida tem a ver com o desejo e o prazer do corpo. A segunda como cidadão livre e responsável. A terceira como pesquisador e filósofo, Aristóteles sublinha que estas três formas se completam para que o homem possa ter uma vida feliz. Ele recusava, portanto, qualquer tipo de parcialidade. Se vivesse hoje, talvez dissesse que um homem que apenas cuida do seu corpo vive tão parcialmente e tão mal como aquele que apenas usa a cabeça. Ambos os extremos são expressão de uma conduta errada de vida. No que diz respeito à relação com o próximo, Aristóteles também aconselha um "meio termo". Não devemos ser covardes nem temerários, mas corajosos. (Pouca coragem significa covardia, demasiada coragem significa temeridade). Também não devemos ser avarentos nem esbanjadores, mas generosos. (Ser pouco generoso é avareza, ser muito generoso é esbanjamento). O mesmo é válido para a alimentação. Comer pouco é perigoso, mas comer muito também é perigoso. A ética de Platão e de Aristóteles faz recordar a ciência médica grega: só através da harmonia e da moderação me torno um homem feliz ou "harmonioso". A idéia de que o homem não deve levar nada ao extremo, na vida, está também patente na visão aristotélica da sociedade. Aristóteles afirmava que o homem é um "ser social". Na sua opinião, sem a sociedade à nossa volta não somos verdadeiros homens. A família e a cidade satisfazem as necessidades vitais mais básicas como a alimentação e o calor, o casamento e a educação dos filhos. Todavia, a forma mais elevada de comunidade humana só pode ser, para Aristóteles, o Estado. Com isto coloca-se a questão: como é que o Estado deveria ser organizado? (Ainda te recordas do Estado platônico dos filósofos?). Aristóteles menciona várias formas boas de governo. Uma delas é a “monarquia” - significa que há um único chefe supremo do Estado. Para que esta forma de Estado seja boa, não pode degenerar em "tirania", caso em que um único soberano governa o Estado em seu próprio proveito. Uma outra forma boa de Estado é a “aristocracia”. A aristocracia é o governo de um grupo restrito de indivíduos. Esta forma de Estado tem de se precaver para não degenerar numa oligarquia, um regime no qual apenas são salvaguardados os interesses de poucas pessoas. Uma terceira forma de Estado é a “democracia”. Mas também esta forma de Estado tem o seu lado contrário. Uma democracia pode facilmente degenerar numa "oclocracia" que significa governo da multidão. (Mesmo que Hitler não se tivesse tornado chefe de Estado da Alemanha, muitos pequenos nazis teriam podido estabelecer uma terrível "oclocracia"). Finalmente, temos de dizer algo acerca da ideia de Aristóteles sobre a mulher. Infelizmente, não era tão animadora como a de Platão. Aristóteles pensava que algo faltava à mulher. Ela é um "homem incompleto". Na reprodução, a mulher é passiva e receptora, enquanto o homem é ativo e doador. Por isso, segundo Aristóteles, a criança herdava apenas as características do homem. Todas as características da criança estavam contidas no sêmen do homem. A mulher é como o terreno que recebe e conserva a semente, enquanto o homem é o próprio "semeador". Ou, dito de uma forma verdadeiramente aristotélica: o homem dá a "forma", a mulher dá a "matéria". É surpreendente e lamentável que um homem tão perspicaz como Aristóteles se pudesse enganar desse jeito no que se refere à relação entre os sexos. Mas isto nos mostra duas coisas: primeiro, que Aristóteles não deve ter tido muita experiência pratica na vida com mulheres e crianças; em segundo lugar, que uma série de coisas pode dar errado quando são apenas homens que reinam supremos na filosofia e na ciência. A concepção aristotélica da mulher é particularmente grave porque se tornou predominante durante a Idade Média, e não a de Platão. Deste modo, também a Igreja herdou uma concepção da mulher para a qual não há justificação nenhuma na Bíblia. Jesus não era de modo algum inimigo das mulheres! Por agora não digo mais nada! Mas continuarás a ter notícias minhas. Após ter lido duas vezes o capítulo acerca de Aristóteles, Sofia meteu de novo as folhas no envelope amarelo e olhou ao seu redor. Depois de ter lido acerca de Aristóteles sabia que era igualmente importante manter a ordem em conceitos e ideias. .
Questões 1.Quais as diferenças entre Platão e Aristóteles? 2. Qual a importância de Aristóteles para a cultura europeia? 3.Em que Aristóteles estava de acordo com Platão? 4. Porque para Aristóteles as ideias não eram inatas? 5.O que era “matéria” e “forma” para Aristóteles? 6. Porque pode-se dizer que Aristóteles foi um homem meticuloso e metódico? 7. Comente sobre a divisão da natureza entre coisas inanimadas e animadas. 8, Em que o homem se diferencia e se assemelha em relação a animais e plantas? 9. Quais as três formas de se adquirir uma vida feliz? 10. Quais eram as ideias de Aristóteles sobre as mulheres?

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

O livre-arbítrio não existe, dizem neurocientistas (Aretha Yarak – Veja:Ciência)

Saber se os homens são capazes de fazer escolhas e eleger o seu caminho, ou se não passam de joguetes de alguma força misteriosa, tem sido há séculos um dos grandes temas da filosofia e da religião. De certa maneira, a primeira tese saiu vencedora no mundo moderno. Vivemos no mundo de Cássio, um dos personagens da tragédia Júlio César, de William Shakespeare. No começo da peça, o nobre Brutus teme que o povo aceite César como rei, o que poria fim à República, o regime adotado por Roma desde tempos imemoriais. Ele hesita, não sabe o que fazer. É quando Cássio procura induzi-lo à ação. Seu discurso contém a mais célebre defesa do livre-arbítrio encontrada nos livros. "Há momentos", diz ele, "em que os homens são donos de seu fado. Não é dos astros, caro Brutus, a culpa, mas de nós mesmos, se nos rebaixamos ao papel de instrumentos." Como nem sempre é o caso com os temas filosóficos, a crença no livre-arbítrio tem reflexos bastante concretos no "mundo real". A maneira como a lei atribui responsabilidade às pessoas ou pune criminosos, por exemplo, depende da ideia de que somos livres para tomar decisões, e portanto devemos responder por elas. Mas a vitória do livre-arbítrio nunca foi completa. Nunca deixaram de existir aqueles que acreditam que o destino está escrito nas estrelas, é ditado por Deus, pelos instintos, ou pelos condicionamentos sociais. Recentemente, o exército dos deterministas – para usar uma palavra que os engloba – ganhou um reforço de peso: o dos neurocientistas. Eles são enfáticos: o livre-arbítrio não é mais que uma ilusão. E dizem isso munidos de um vasto arsenal de dados, colhidos por meio de testes que monitoram o cérebro em tempo real. O que muda se de fato for assim? Mais rápido que o pensamento — Experimentos que vêm sendo realizados por cientistas há anos conseguiram mapear a existência de atividade cerebral antes que a pessoa tivesse consciência do que iria fazer. Ou seja, o cérebro já sabia o que seria feito, mas a pessoa ainda não. Seríamos como computadores de carne - e nossa consciência, não mais do que a tela do monitor. Um dos primeiros trabalhos que ajudaram a colocar o livre-arbítrio em suspensão foi realizado em 2008. O psicólogo Benjamin Libet, em um experimento hoje considerado clássico, mostrou que uma região do cérebro envolvida em coordenar a atividade motora apresentava atividade elétrica uma fração de segundos antes dos voluntários tomarem uma decisão – no caso, apertar um botão. Estudos posteriores corroboraram a tese de Libet, de que a atividade cerebral precede e determina uma escolha consciente. Um deles foi publicado no periódico científico PLoS ONE, em junho de 2011, com resultados impactantes. O pesquisador Stefan Bode e sua equipe realizaram exames de ressonância magnética em 12 voluntários, todos entre 22 e 29 anos de idade. Assim como o experimento de Libet, a tarefa era apertar um botão, com a mão direita ou a esquerda. Resultado: os pesquisadores conseguiram prever qual seria a decisão tomada pelos voluntários sete segundos antes de eles tomarem consciência do que faziam. Nesses sete segundos entre o ato e a consciência dele, foi possível registrar atividade elétrica no córtex polo-frontal — área ainda pouco conhecida pela medicina, relacionada ao manejo de múltiplas tarefas. Em seguida, a atividade elétrica foi direcionada para o córtex parietal, uma região de integração sensorial. A pesquisa não foi a primeira a usar ressonância magnética para investigar o livre-arbítrio no cérebro. Nunca, no entanto, havia sido encontrada uma diferença tão grande entre a atividade cerebral e o ato consciente. Patrick Haggard, pesquisador do Instituto de Neurociência Cognitiva e do Departamento de Psicologia da Universidade College London, na Inglaterra, cita experimentos que comprovam, segundo ele, que o sentimento de querer algo acontece após (e não antes) de uma atividade elétrica no cérebro. "Neurocirurgiões usaram um eletrodo para estimular um determinado local da área motora do cérebro. Como consequência, o paciente manifestou em seguida o desejo de levantar a mão", disse Haggard em entrevista ao site de VEJA. "Isso evidencia que já existe atividade cerebral antes de qualquer decisão que a gente tome, seja ela motora ou sentimental." O psicólogo Jonathan Haidt, da Universidade da Vírginia, nos Estados Unidos, demonstrou que grande parte dos julgamentos morais também é feito de maneira automática, com influência direta de fortes sentimentos associados a certo e errado. Não há racionalização. Segundo o pesquisador, certas escolhas morais – como a de rejeitar o incesto – foram selecionadas pela evolução, porque funcionou em diversas situações para evitar descendentes menos saudáveis pela expressão de genes recessivos. É algo inato e, por isso, comum e universal a todas as culturas. Para a neurociência, é mais um dos exemplos de como o cérebro traz à tona algo que aprendeu para conservar a espécie.
DEPOIS DE LER O TEXTO, RESPONDAM AS QUESTÕES A SEGUIR: 1. De acordo com o texto, qual é a tese defendida pelos neurocientistas? De que forma eles justificam essa tese? 2. Por que é possível afirmar que eles defendem uma visão determinista do ser humano? Justifique. 3. Qual tipo de determinismo está presente no texto? Justifique. 4. Explique a seguinte ideia presente no texto “a crença no livre-arbítrio tem reflexos bastante concretos no "mundo real". 5. Explique a relação entre determinismo e moral apontada no texto.