quinta-feira, 4 de outubro de 2012

TEXTO PARA O TRABALHO DO 3 ANO - LIVRO FILOSOFANDO - CAPÍTULO 35 A MORTE

Quem ensinasse os homens a morrer, os ensinaria a viver. (Montaigne) O que se tornou perfeito, inteiramente maduro, quer morrer. (Nietzsche) Só há um problema filosófico verdadeiramente sério: é o suicídio. Julgar se a vida merece ou não ser vivida, é responder a uma questão fundamental da filosofia. (Camus)
1. A morte como enigma A morte é o destino inexorável de todos os seres vivos. No entanto, só o homem tem consciência da própria morte. Por se perceber finito, o homem aguarda com ansiedade o que poderá ocorrer após a morte. A crença na imortalidade, na vida depois da morte, simboliza bem a recusa da própria destruição e o anseio de eternidade. Estudos a respeito dos primórdios da nossa civilização relacionam o aparecimento das primeiras angústias metafísicas do homem ao registro dos sinais de culto aos mortos. Portanto a morte se apresenta desde o início como uma fronteira que não significa apenas o fim da vida, mas o limiar de outra realidade instigante porque ininteligível, além de atemorizadora. A morte daqueles que amamos e a iminência da nossa própria morte estimula a crença a respeito da imortalidade. Segundo Jaspers,"existe algo em nós que não se pode crer suscetível de destruição". Por isso é inevitável que desde o início da cultura humana o recurso à fé religiosa tenha aplacado o temor diante do desconhecido. Através dos tempos, a consciência religiosa tem oferecido um conjunto de convicções que orientam o comportamento humano diante do mistério da morte: quer seja pelos rituais de passagem dos primitivos quer seja nas religiões mais elaboradas, pelos preceitos do viver terreno para garantir melhor destino à alma. Por isso, a angústia da morte tem levado à crença na imortalidade e na aceitação do sobrenatural, do sagrado, do divino.
2. As mortes simbólicas O homem não tem, contudo, consciência apenas da morte enquanto fim da sua vida. O conceito de finitude o acompanha em tudo que faz: é significativa a imagem mítica do deus Cronos (Tempo) devorando os próprios filhos. A morte, como clímax de um processo, é antecedida por diversas formas de "morte" que permeiam o tempo todo a vida humana. O próprio nascimento é a primeira morte, no sentido de ser a primeira perda, a primeira separação. Rompido o cordão umbilical, a antiga e cálida simbiose do feto no útero materno é substituída pelo enfrentamento do novo ambiente. A MORTE A oposição entre o velho e o novo repete indefinidamente a primeira ruptura e explica a angústia do homem diante do seu próprio dilaceramento interno: ao mesmo tempo que anseia pelo novo, teme abandonar o conforto e a segurança da estrutura antiga a que já se habituou. Os heróis, os santos, os artistas, os revolucionários são sempre os que se tornam capazes de enfrentar o desafio da morte, tanto no sentido literal como no simbólico, por serem capazes de construir o novo a partir da superação da velha ordem.
3. A filosofia e a morte No diálogo Fedon Platão descreve os momentos finais da "ida de Sócrates antes de sua execução, quando discute com os discípulos a respeito da ligação entre corpo e alma. Sendo o corpo um estorvo para a alma, a serenidade do sábio diante da morte é o reconhecimento de que a separação significa a libertação do espírito. No decorrer da história da filosofia, muitas vezes os pensadores trataram explicitamente a respeito da morte e da imortalidade da alma, mas essa questão está na raiz de toda filosofia e, mesmo quando não se discute diretamente sobre a morte, ela se situ a no horizonte de toda reflexão filosófica. É nesse sentido que Platão afirma ser a filosofia uma meditação da morte, e Montaigne diz que "filosofar é aprender a morrer". Pois se a filosofia é uma das formas da transcendência humana, pela qual refletimos a respeito de nossa existência e destino, a discussão sobre a morte não lhe pode ser estranha. Segundo Heidegger (ver Capitulo 31 - O existencialismo), o ser do homem como possibilidade, como projeto, o introduz na temporalidade. Isso não significa apenas que o homem tem um passado e um futuro e que os momentos se sucedem passivamente uns aos outros; significa que o futuro se revela como aquilo para o qual a existência é projetada e que o passado é aquilo que a existência transcende. O existir humano consiste no lançar-se continuo às possibilidades, entre as quais se encontra justamente a situação-limite representada pela morte, a qual possibilita o olhar crítico sobre o cotidiano. E nesse sentido que podemos considerar o homem como um "ser-para-a-morte". Para Heidegger, só o homem autêntico enfrenta a angústia e assume a construção da sua vida. O homem inautêntico foge da angústia, refugia-se na impessoalidade, nega a transcendência e repete os gestos de "todo o mundo" nos atos cotidianos. No mundo massificado do homem inautêntico, até a morte é banalizada, e dela se fala como se fosse um acontecimento genérico, longínquo e impalpável. A impessoalidade tranquiliza e aliena o homem, confortavelmente instalado num universo sem indagações. Há a recusa de refletir sobre a morte como um acontecimento que nos atinge pessoalmente. Sartre, referindo-se à sua infância em As palavras, diz: "A morte era a minha vertigem porque eu não amava viver: é o que explica o terror que ela me inspirava. (...) Quanto mais absurda a vida, menos suportável é a morte". Na teoria sartriana, ao contrário da de Heidegger, a consciência da morte retira todo significado à vida, pois a morte é a" nadificação" dos nossos projetos, a certeza de que um nada total nos espera . E conclui pelo absurdo da morte e, simultaneamente, da vida, que é uma "paixão inútil". Mas seja a morte considerada, como em Heidegger, algo que dá sentido à vida; ou, como em Sartre, a dimensão do absurdo, o que nos intriga é a recusa que o homem contemporâneo manifesta em abordar a temática do morrer humano. Em nenhum tempo a recusa do enfrentamento da própria fínitude foi tão visível. Muitas podem ser as explicações dadas por antropólogos, sociólogos, psicólogos que certamente fecundarão a matéria de reflexão dos filósofos. O que não podemos é deixar de pensar na morte: vejamos por que.
4. Aspecto histórico-social da morte As sociedades tribais e tradicionais Observando a história e os diversos povos, verificamos que o sentido da morte não é sempre o mesmo. A maneira pela qual um povo enfrenta a morte ou o significado que lhe dá refletem de certa forma o sentido que ele confere à vida. Os pólos antagônicos vida e morte não são excludentes, pois são formas dialéticas inseparáveis. No mundo tribal, a morte não é propriamente um problema. Ela não é enfocada do ponto de vista da morte de um indivíduo, mas se acha integrada nas práticas coletivas de culto aos mortos, aos ancestrais. Como vimos no Capítulo 6, o homem primitivo se acha de tal forma envolvido na comunidade que o seu ser, não tendo o centro em si mesmo, se faz por meio da participação no todo coletivo. Como o eu se afirma pelos outros, o existir do primitivo é essencialmente relacional, e a individualidade se encontra envolvida pela totalidade maior da comunidade. Por isso a morte não é percebida como dissolução, o morto apenas muda de estado e passa a pertencer à comunidade dos mortos, o que é viabilizado por "rituais de passagem" adequados à ocasião. "Vivos e mortos, totem e deuses, antepassados, participam de uma mesma realidade vital."' Não há nenhuma idéia de aniquilamento, e os mortos podem retornar ao mundo dos vivos durante o sono destes e por meio de aparições. Nas sociedades tradicionais, fortemente marcadas pela predominância da vida comunitária, ocorre algo semelhante. Como são sociedades relacionais, onde o indivíduo se encontra inserido numa totalidade mais importante que ele, há uma série de cerimônias e rituais que cercam o evento da morte. Isso não significa que seja fácil morrer (muito ao contrário), mas sim que a morte não é banalizada porque se acha inserida no cotidiano das pessoas como um evento importante. Evidentemente, essas cerimônias variam conforme os costumes, mas v amos relembrar algumas delas, típicas das pequenas cidades, até ainda na primeira metade do século XX. Os parentes, vizinhos e amigos acompanham a agonia do moribundo. Geralmente o doente permanece em casa, atendido pelo médico da família. As cerimônias são procedidas conforme a religião do morto: dependendo disso, chama-se o padre para dar a extrema unção, de preferência enquanto há lucidez, sem falsos escrúpulos de que o doente perceba a proximidade da morte. Ao morrer, geralmente seu caixão é colocado sobre a mesa da sala de jantar e diante dele passarão os parentes, conhecidos e até transeuntes ocasionais, velando -se o defunto noite adentro. As crianças circulam pelo ambiente. O morto é chorado e freqüentemente relembrado. A ausência é assinalada pelo luto, cuja duração varia conforme o tipo de parentesco; em algumas regiões, a viúva deve guardá-lo pelo resto da vida. Um conjunto de atos determinados socialmente - como visitas ao cemitério, missas para a alma do morto, flores, visitas de pês ames, cartas de condolências - ajuda os parentes a atravessar o período doloroso da perda e a reintegração à vida normal. A negação da morte Um fenômeno diferente vem ocorrendo há cerca de cinquenta anos, como resultado do processo de urbanização dos centros industrializados. A grande cidade cosmopolita impiedosamente destruiu os antigos laços, fragmentando a comunidade em núcleos cada vez menores e instaurando extremo individualismo. As pessoas vivem no ritmo acelerado imprimido pelo sistema de produção e não têm tempo para os velhos e os doentes. A medicina, cada vez mais especializada, se ocupa desses "marginais" da sociedade - porque reduzidos à improdutividade -, que são trasladados para hospitais "a fim de ser melhor assistidos". Se, por um lado, são tratados em ambientes assépticos e com técnicas sofisticadas que prolongam a vida, por outro lado não escapam à solidão e à impessoalidade do atendimento. Os enfermeiros e médicos são eficientes, mas o moribundo se encontra afastado da mão amiga, da atenção sem pressa nem profissionalismo. Quando morre, o velório geralmente é feito no necrotério, para o qual não se costuma levar crianças, as quais crescem à margem dessa realidade da vida: nunca veem um morto, nem um cemitério. *** O. Gusdorf, Tratado de metafísica, p. 99. O francês Philippe Ariês aborda essas questões no clássico História da morte no Ocidente. Nele se refere ao sociólogo Geoffrey Gorer, que escreveu um estudo com o título provocativo de "A pornografia da morte", no qual mostra como a morte se tornou um tabu,substituindo o sexo como principal interdito: "Antigamente dizia-se às crianças que se nascia dentro de um repolho, mas elas assistiam à grande cena das despedidas, à cabeceira do moribundo. Hoje, são iniciadas desde a mais tenra idade na fisiologia do amor, mas, quando não veem mais o avô e se surpreendem, alguém lhes diz que ele repousa num belo jardim por entre as flores"> A "obscenidade" em falar da morte se torna grave quando se t rata dos doentes terminais, ou seja, daqueles que não escaparão da morte próxima. É comum tal fato ser escamoteado: os parentes, com a cumplicidade dos médicos, escondem do paciente sua doença letal e o fim próximo. Nem diante da iminência da morte ousamos falar dela. A tentativa de ocultamento da morte talvez explique a sofisticação das funerárias americanas que "tomam conta do morto". Medard Boss, médico e psicanalista suíço, diz: "Nunca esquecerei minhas visitas aos "Funeral Homes" americanos, nos quais os defuntos são maquilados, um cigarro é colocado em suas bocas, e ao lado se tocam fitas gravadas com discursos que os falecidos pronunciaram outrora ". O antropólogo brasileiro Roberto da Matta também se refere ao fato de os mortos serem colocados em caixões acolchoados de cetim que lembram uma cama confortável: "O que seria tudo isto, senão um modo radical de livrar -se do morto, transformando-o em alguém que realmente dá a impressão de repousar?" Por que será que o homem contemporâneo escamoteia assim a morte? Talvez porque a dificuldade que ele sente para lidar com a morte esteja relacionada à sua incapacidade para lidar com a vida. O homem urbano, individualista, massacrado pelo sistema de produção, obrigado a desempenhar funções que não escolheu e num ritmo que não é o seu, acha -se muito distante daquilo que poderíamos considerar uma boa qualidade de vida. Independentemente do progresso técnico atingido, são altos os níveis de alienação humana no trabalho, no consumo, no lazer (ver Capítulo 2 - Trabalho e alienação). Mais ainda, a insensibilidade com relação à morte individual tem paralelo com a inconsciência referente ao destino do planeta. Pela primeira vez na história da humanidade a morte ultrapassa a dimensão do indivíduo e ameaça a sobrevivência de todos. Por isso, é preciso resgatar, no mundo atual, a consciência da morte, o que não deve ser entendido como a preocupação mórbida, doentia do homem que vive obcecado pela morte inevitável. Tal atitude seria pessimista e paralisante. Ao contrário, ao reconhecer a finitude da vida, reavaliamos nosso comportamento e escolhas, e podemos proceder a uma diferente priorização de valores. Por exemplo, se tomamos como valores absolutos o acúmu o de bens, a fama e o poder, a reflexão sobre a mortalidade torna ridículos esses anseios, privilegiando outros valores que nos dão maior dignidade. Essa mesma reflexão, no nível planetário, nos ajuda a questionar os falsos objetivos do progresso a qualquer custo. A consciência da morte nos ajuda a questionar não só se nossa vida é autêntica ou inautêntica, mas também se faz sentido o destino que os povos legaram para seus herdeiros.
Exercícios
1. "O problema da morte, em seu significado radical, não tem apenas conexão com o problema do aniquilamento ou da sobrevivência: consiste nele." (Julian Marias) Em que medida a citação acima revela a dimensão religiosa da morte?
2. "No fundo de nós mesmos, nós nos sentimos não-mortais". Comente a frase de Philippe Ariês, observando que ele não diz "imortais", mas "não-mortais". 3. Em que sentido a reflexão sobre a morte pode ser importante para a ética?
4. Qual é a principal diferença entre o enfrentamento da morte no mundo tribal, nas sociedades tradicionais e no mundo contemporâneo?
5. O que quer dizer, nas sociedades contemporâneas, o "tabu da morte"?
6. "... ninguém morre antes da hora, O tempo que perdeis não vos pertence mais do que o que p recedeu vosso nascimento, e não vos interessa". "Considerai em verdade que os séculos intermináveis ,já passados, são para vós como se não tivessem sido. Qualquer que seja a duração de vossa vida, ela é completa. Sua utilidade não reside na duração e sim no emprego que lhe dais. Há quem viveu muito e não viveu, Meditai sobre isso enquanto o podeis fazer, pois depende de vós, e não do número de anos, terdes vivido bastante. Imagináveis então nunca chegardes ao ponto para o qual vos dirigíeis? Haverá caminho que não tenha fim?" (Montaigne) Comente o significado do trecho dos Ensaios, de Montaigne, capítulo XX, intitulado "De como filosofar é aprender a morrer".